Você já decorou os 118 elementos da tabela periódica?

“Nossa, mas você decorou isso tudo?” Não…???

Gui C de Souza
6 min readFeb 21, 2018

Eu sou professor de Química do ensino médio. Quase sempre que eu falo isso pra alguém, eu recebo como resposta algo similar a “Nossa… eu odiava/não gostava/não ia bem em Química.”

Dói um pouquinho, mas eu entendo completamente. Existem vários fatores envolvendo o ensino de Química (e, por extensão, o próprio sistema educacional brasileiro) que causam essa repulsa. A Química é linda, esse sistema é que esconde isso.

Um dos fatores que assusta muita gente que está tendo o primeiro contato com a Química, que geralmente é no nono ano do ensino fundamental, é a tabela periódica.

A versão mais recente da tabela periódica. 118 elementos, todos com nome e símbolo definitivos. Em uns dez anos deve ter mais coisa aí.

Olhando de fora, ela é um trambolho, com um formato maluco, tem um baita buraco ali em cima, com um pedaço embaixo, parece uma parede de ladrilhos bem malcuidada.

(Ok, talvez eu esteja com sono e fazendo analogias bem imbecis.)

Mas mesmo assim, é a entidade mais icônica da Química do ensino médio — talvez mais do que o próprio átomo. Não que as pessoas gostem dela ou a entendam, mas todo mundo lembra.

É tipo uma batalha naval.

Ou um mapa. Ou uma matriz. Ou uma planilha do Excel.

(Mas comparar com batalha naval é mais legal.
Remete à infância.

eu gostava de batalha naval)

No caso, me refiro ao fato de ser um sistema de coordenadas pra posicionar elementos. O caso é que ela tem esse formato porque deixa próximos aqueles com características mais parecidas (nas filas verticais, chamadas de grupos, caso você não se lembre ou não saiba).

Eu não vou entrar na trajetória histórica da tabela periódica, você tem a internet, procure aí. Existem motivos pra ela ser assim, ter esse formato, e Mendeleev foi foda.

Dmitri Mendeleev (1834–1907). Esse cara foi foda.

Em todo caso, até existem propostas recentes que quebram essa estrutura “retangular” da tabela, mas ainda não são muito adotadas, como essas:

Tá em inglês porque eu peguei da Wikipedia e fiquei com preguiça de fazer uma versão traduzida. [Tradução, em sentido horário a partir da esquerda: Gases nobres / Divisão periódica / Metais alcalinos / Superactinídeos / Lantanídeos & actinídeos / Metais de transição]
Essa aqui eu vi no Crash Course. Tem o molde aqui. Se fizer num papel top, até dá pra deixar de enfeite na mesa.

O ponto é: segundo o nosso sistema educacional atual, uma das habilidades que um estudante de ensino médio tem que ter (ou deveria) é saber interpretar códigos e mecanismos de comunicação específicos das áreas de conhecimento.

• Descrever as transformações químicas em linguagens discursivas.
Compreender os códigos e símbolos próprios da Química atual.
• Traduzir a linguagem discursiva em linguagem simbólica da Química e vice-versa. Utilizar a representação simbólica das transformações químicas e reconhecer suas modificações ao longo do tempo.
• Traduzir a linguagem discursiva em outras linguagens usadas em Química: gráficos, tabelas e relações matemáticas.
• Identificar fontes de informação e formas de obter informações relevantes para o conhecimento da Química (livro, computador, jornais, manuais etc).

Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, Parte III — Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, MEC. p. 39 (destaques meus)

H16 - Relacionar informações apresentadas em diferentes formas de linguagem e representação usadas nas Ciências, como texto discursivo, gráficos, tabelas, relações matemáticas ou linguagem simbólica.

H23 - Utilizar códigos e nomenclatura da química para caracterizar materiais, substâncias e transformações químicas.

Matriz de referência para Ciências da Natureza e suas Tecnologias, INEP. (usada para avaliação no Enem) (destaques meus)

“Você sabe todos os elementos de cabeça?”

Primeira pergunta: para quê?

Não…?

Estamos na era da informação™, essa pergunta é meio merda. Ninguém precisa decorar os cento e dezoito elementos (até então). Claro, quem vive no meio acaba instintivamente sabendo de cor vários símbolos, por uso comum mesmo. Mas, considerando o público geral, ninguém precisa decorar… (a menos que você ache divertido, mas aí é uma coisa sua…)

Química já não tem lá aquela fama bacana entre as pessoas, se hoje tu chega pro jovem de 15 anos e fala “ó, cê vai ter que decorar essa merda aí”, ele manda cê tomar no cu (mentalmente) e abre o Clash Royale.

Na época em que eu aprendi sobre tabela periódica, existiam frasezinhas engraçaralhas para se decorar certos grupos da tabela periódica:

  • Grupo 1: “Hoje li na kama [sic] Robinson Crusoé em francês”
    (eu não sei até hoje quem foi Robinson Crusoé, joguem-me pedras)

Robinson Crusoe é um romance escrito por Daniel Defoe e publicado originalmente em 1719 no Reino Unido.”

“Robinson Crusoe”, Wikipédia

(ok então, é sem acento no E)

  • Grupo 2: “Bela magrela casou com Sr. Barão Ratão”
    (uma versão menos engraçadinha usava “Bela Margarida”)
  • Grupo 18: “lio nem argumentou, krau [sic] na xe--(é melhor parar por aqui)

Isso é engraçadinho, ha ha, mas não serve pra nada. É tática de cursinho, talvez sirva como alívio cômico no meio da avalanche colossal de conteúdo.

(Alguém até poderia estender pra “na verdade a tabela periódica em si também não serve pra nada, química é uma merda, professores não explicam nada, a escOLA ESTÁ FALIDA, PERDI MINHA ADOLESCÊNCIA COM ESSA PORR--gente, calma.)

Uma das paradas que nós professores mais ~jOvEnS~ somos instruídos e, de maneira geral, tentamos (ou deveríamos) fazer, é desestimular essa decoreba sem sentido. Era da informação™, gente. Se o cara quiser ou precisar saber em qual grupo e período está, sei lá, o fleróvio, ele pode só tacar isso no Google.

TA-DA! (Um oferecimento: Wikipédia, que é decente em inglês, mas bem mais ou menos em português)

Não dói (pelo menos pra mim) permitir o uso de uma tabela periódica em sala. Tem muito mais importância se a pessoa souber usar a ferramenta. Se o cara não faz ideia de como se extrai informação da tabela periódica, permitir ou proibir não faz diferença — mas pra pessoa que sabe, proibir a consulta é desnecessário.

Tá, eu ainda restrinjo a permissão pra tabelas periódicas em papel, tal qual os australopitecos faziam… Uso de celular em sala de aula ainda é algo bem nebuloso, e todo mundo sabe que era da informação™ é o cacete pra 80% dos alunos e eles vão rotear 3G pra ficar no zap e vendo página de meme bosta no Facebook.

(Mas fala “ô fulano, aproveita que cê tá com esse celular aí e procura aí pra galera onde é que tá o fleróvio” pra ver se os créditos e a bateria não somem rapidinho…)

Enfim, não mata consultar a tabela periódica. Talvez mate aquelas perguntas moldezinho do tipo

“Determine em que grupo e período o fleróvio (Z = 114) se encontra na tabela periódica.”

que são montadas pra você fazer uma imensa distribuição eletrônica em subníveis e daí deduzir onde o elemento se encontra.

Mas aí é nosso trabalho, como professores, contornar isso e achar soluções criativas!!! (leia com uma animação descomunal)

Pra daí depois vir um vestibular qualquer, sem tabela periódica pra consultar, e fazer uma maldita pergunta desse tipo.

Que merda.

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Gui C de Souza

Protoprofessor de Química e pseudoeditor de vídeo que arrisca uns motion graphics.